sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Dentro da garrafa



Saio pelas ruas, pelos bares, pelas noites, pelas canções. Sou uma espectadora do mundo, mesmo que insistam que eu faço parte dele. Ando pelas esquinas e costuro histórias. Engulo vidas que não são minhas e meu estômago incha. Vejo a loucura entrando no trem, quase no instante em que as portas automáticas são fechadas pelo motorista. Não sorri, a loucura.
Observo sua calça de moletom, seu sapato sujo, sua blusa gasta cobrindo a barriga enorme. As mãos morenas passam sobre o tecido de lã em movimentos circulares. A loucura também sente fome. Tem olhos discretos que penetram nas pessoas. A loucura fala que não bebe, que não fuma, que sente a barriga roncar. Há dias que a loucura não come. 
A mulher com roupa de aeromoça tira a carteira de couro da bolsa. Dá umas moedas para a loucura. O homem vestido com um terno azul-marinho procura no bolso qualquer coisa que possa lhe dar, mas finge não encontrar o que procura. Um menino abre a mochila da escola e de lá tira um sanduíche e um suco de laranja. Levanta e estende para a loucura. Sabe que ela tem fome. É uma criança e sabe que ela tem fome. 
Instintivamente, como um animal, a loucura se acomoda no chão sujo do trem. Come com veracidade o sanduíche de queijo com presunto. Quando termina, procura as migalhas que caíram na roupa e as leva aos lábios. Saboreia cada resto. Na pressa de comer, deixa voar a sacola onde estava a comida. O vento leva a sacola para onde quer. Tão leve, a sacola. Tão pesada, a loucura. 
A loucura me olha e murmura. Não entendo. Duas lágrimas correm copiosamente pelas minhas bochechas duras de frio. Não sei o que fazer. Penso nas pessoas que todos os dias se atiram na frente do trem. Ninguém diz. Penso nas pessoas que todos os dias sentem o seu próprio peso. Transformam em doença a pobre da loucura. Que culpa tem ela de não saber que existe um consciente, pergunto-me. 
Limpo as lágrimas e abro a bolsa. Procuro os últimos reais e alcanço. Não vejo quanto é, mas ela me olha agradecida. Leio seus lábios. Eles me pedem desculpa pela roupa suja e rasgada. Olho para ela. Não sei o que meus olhos dizem. Não sei o que ela interpreta. Vira as costas e sai para o frio da noite. Seus pés se arrastando. Sua vida se arrastando nos trilhos de um trem. Amanhã ou depois. Nunca se sabe quando será ou quem será a próxima pessoa que vai se atirar. Homens de família. Prostitutas. Mendigos. Crianças. No fundo, não faz a mínima diferença. A loucura não escolhe corpo.