Saio pelas ruas, pelos bares, pelas noites, pelas canções. Sou uma espectadora do mundo, mesmo que insistam que eu faço parte dele. Ando pelas esquinas e costuro histórias. Engulo vidas que não são minhas e meu estômago incha. Vejo a loucura entrando no trem, quase no instante em que as portas automáticas são fechadas pelo motorista. Não sorri, a loucura.
Observo sua calça de moletom, seu sapato sujo, sua blusa gasta cobrindo a barriga enorme. As mãos morenas passam sobre o tecido de lã em movimentos circulares. A loucura também sente fome. Tem olhos discretos que penetram nas pessoas. A loucura fala que não bebe, que não fuma, que sente a barriga roncar. Há dias que a loucura não come.
A mulher com roupa de aeromoça tira a carteira de couro da bolsa. Dá umas moedas para a loucura. O homem vestido com um terno azul-marinho procura no bolso qualquer coisa que possa lhe dar, mas finge não encontrar o que procura. Um menino abre a mochila da escola e de lá tira um sanduíche e um suco de laranja. Levanta e estende para a loucura. Sabe que ela tem fome. É uma criança e sabe que ela tem fome.
Instintivamente, como um animal, a loucura se acomoda no chão sujo do trem. Come com veracidade o sanduíche de queijo com presunto. Quando termina, procura as migalhas que caíram na roupa e as leva aos lábios. Saboreia cada resto. Na pressa de comer, deixa voar a sacola onde estava a comida. O vento leva a sacola para onde quer. Tão leve, a sacola. Tão pesada, a loucura.
A loucura me olha e murmura. Não entendo. Duas lágrimas correm copiosamente pelas minhas bochechas duras de frio. Não sei o que fazer. Penso nas pessoas que todos os dias se atiram na frente do trem. Ninguém diz. Penso nas pessoas que todos os dias sentem o seu próprio peso. Transformam em doença a pobre da loucura. Que culpa tem ela de não saber que existe um consciente, pergunto-me.
Limpo as lágrimas e abro a bolsa. Procuro os últimos reais e alcanço. Não vejo quanto é, mas ela me olha agradecida. Leio seus lábios. Eles me pedem desculpa pela roupa suja e rasgada. Olho para ela. Não sei o que meus olhos dizem. Não sei o que ela interpreta. Vira as costas e sai para o frio da noite. Seus pés se arrastando. Sua vida se arrastando nos trilhos de um trem. Amanhã ou depois. Nunca se sabe quando será ou quem será a próxima pessoa que vai se atirar. Homens de família. Prostitutas. Mendigos. Crianças. No fundo, não faz a mínima diferença. A loucura não escolhe corpo.