domingo, 4 de agosto de 2013

Calço - coisa que se põe debaixo de um objeto para impedir que role, deslize ou se incline

Engraçado ela ter decidido viver quando tudo o que eu podia querer era me trancar no meu próprio mundo e ver de longe todo o resto. Sempre era o contrário: eu solta pelas ruas, os olhos curiosos e o corpo leve, de tanta que era a vontade de experimentar tudo; ela protegida na sua rebeldia, nas frases ácidas, nos olhares diretos e curtos, a intenção se resumindo a não estar no mundo. E então nos desconstruímos. 
Foi há oito meses que ela me disse que tinha escolhido viver, e que estar morta durante os últimos 10 anos fez com que percebesse que de nada adiantava se esconder, tampouco esculpir no quarto um mundo de certezas e de fita mimosa roxa. Sentia era vontade de sair nas sextas, nos sábados e nas segundas. Em alguns domingos, não. Sentia era vontade de abrir os lábios, ainda que rachados, e sorrir para desconhecidos. Ouvi-a a dizer isto sentada na mesa da cozinha, a voz calma contrariando as palavras de agitação.
É claro que me dizendo isto ela não sabia que eu estava cansada. E que estava cansada há tanto tempo que os traços do meu rosto ficaram mais doces para compensar o estrago. Me dizendo isso, pensou que poderia partilhar esse estado de imersão no mundo. Que eu também sairia nas sextas, nos sábados e nas segundas. Talvez sugerisse a quarta. Malditas quartas. Mas eu não sugeri nada. Também não disse qualquer outra coisa. Fiquei com as mãos cruzadas em cima da calça azul do pijama de navios, as unhas roídas denunciando as angústias. Tão óbvio era olhar para as minhas mãos machucadas, as unhas curtas, que eu me perguntei se ela percebia, se ela percebia as angústias. Ou se percebia e fingia não ver. Mas como é que alguém podia não ver que as angústias se manifestavam na ponta dos dedos?
E no nosso silêncio pude compreender que se ela não me compreendia, se não compreendia que eu tinha escolhido me fechar, pelo menos me sentia. Só algumas semanas depois é que entendi que nos completávamos. Falar isso agora pode soar clichê, mas é no sentido literal da palavra. Juntas, somávamos cansaço e vontade de viver. Mas só quando não havia ninguém mais. Com a presença de outras pessoas, a magia se quebrava. E novamente ela era ela e eu era eu, sem nada para ser acrescido.
Saímos nos domingos depois dessa conversa, e também nas noites de terça. E me pesava tanto as saídas que depois eu ficava em casa por semanas, sem nem poder pensar na claridade da rua - ou nas sombras que me perseguiam quando nos despedíamos na esquina e ela seguia o seu caminho, e eu o meu. Nunca quis lhe dizer que eu tinha desistido de procurar nas noites um sentido que não havia nos dias. Porque mesmo quando eu vivia, quando queria experimentar, mesmo naquele tempo eu não acreditava em sentido.