segunda-feira, 1 de julho de 2013

Maria, a que não tem sobrenome


Esses dias a vi chorando no trem. Acho que foi quinta. Ou segunda. Não sei. Todos os dias parecem o mesmo quando se está no trem. Ela apoiava o braço direito no vão da janela. Um livro aberto pousava no colo e a mão esquerda limpava as lágrimas que insistiam em cair nas bochechas rosadas. Ela não demonstrava dor ou tristeza. As lágrimas apenas saíam, como se esse fosse um processo automático, tão automático quanto o movimento da mão que as limpava quase no mesmo instante em que caíam.
Vi que ela tinha passado batom, mas que do batom havia sobrado, nos lábios finos, apenas um contorno em vermelho. Pensei se ela era uma daquelas mulheres que passava batom não para ficar bonita, mas para tentar se alegrar. E talvez as botas sujas e a forma desajeitada de se sentar respondam a essa dúvida. O cabelo, curto e liso, estava um tanto despenteado e, a cada vez que o vento invadia a janela do trem, ficava mais desalinhado. Ela não fazia esforço algum para mantê-lo em ordem. 
Estava com um casaco fino, e volta e meia tremia, não como se sentisse frio, mas como se um arrepio percorresse a espinha. E como fazia frio naquele final de tarde! O cachecol estava tão desalinhado quanto o cabelo, e quase escorregava pelo lado esquerdo para cair em suas pernas. Eu quis saber qual era o título do livro que estava aberto, mas, como ela não lia, só o deixava sobre as pernas, não consegui saber. Às vezes ela passava os olhos pelas páginas, mas eles ficavam molhados com tal frequência que, percebi, era-lhe impossível ler mais de uma frase. E, lendo de pouquinho em pouquinho, perdia-se o sabor da história - pensei que ela também pensava assim. 
Em nenhum momento me perguntei por que é que chorava. Foram 40 minutos de viagem. E em minuto algum pensei por que diabos ela chorava. Acho que a sequência dos seus gestos roubava toda a atenção. Uma ou duas vezes a vi olhando pela janela. Era engraçado porque não havia nada para se ver pela janela do trem, apenas a quase noite e o reflexo das luzes dos vagões e das outras pessoas olhando para fora tentando ver o que não havia para ser visto.
Quase pensei que nossos olhares poderiam se encontrar no reflexo do vidro. E seria tão bonito. Seria bonito se os seus olhos cheios d’água não comprometessem a visão. Seria ainda mais bonito apenas se os seus olhos não estivessem cheios d’água. Poucas pessoas a observavam. E é estranho que as pessoas não achem estranho uma pessoa chorando no meio do trem, no final de uma tarde, nos últimos dias de junho, no começo de outro inverno. Que ela não desperte curiosidade, ou ao menos aquelas testas enrugadas de pena ou de compreensão. 
 Talvez tenha sido melhor que não tivessem reparado nela. Ou pior. Se reparassem, quem sabe ela teria saído daquela letargia, daqueles movimentos automáticos – a água correndo pelo rosto, a mão esquerda tentando limpar. Quem sabe ela teria saído daquele mundo tão indecifrável para ver outro, ali mesmo, no trem. Para ver outros. Ou teria ficado envergonhada. Ou teria chorado ainda mais. 
Ela desceu na penúltima estação. Desceu cambaleando, tentando firmar os pés no chão, a mão direita tentando arrumar o cachecol enquanto que a esquerda ainda tentava enxugar a água salgada. É verdade que tentavam, mas nem sempre o movimento atingia a sua meta. Algumas gotas desciam até o nariz, faziam a curva e paravam no canto da boca. Vai ver que foi por causa disso que o batom se transformou em contorno. Ao levantar, esqueci de ver o título do livro quando o fechou e guardou na bolsa. Fiquei vendo o brinco dourado brilhando enquanto ela se contorcia para arrumar as coisas. O rosto permanecia sereno. 
Desceu e sumiu na noite. Desceu e deixou na noite esse pensamento que não some como ela. Que nem bem é pensamento. Mas que existe. E que, por existir, já ocupa esse espaço, que não é automático, como a água que caía dos seus olhos, e como a mão esquerda que tentava limpá-la.