quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O conhaque, a vista da janela e todo o resto

Senta-se diante da janela, com um copo de conhaque e gelo. Observa as pedras derreterem rapidamente, apesar de a noite ser quase amena. Esperou o dia todo pela chuva. E agora espera pelas palavras. Não se importa se elas chegam ou vão embora. As duas. Não se importa também se elas decidirem nunca mais aparecer. Tudo parece correr bem. 
A vida tem sido bonita do terceiro andar, uma vista em close fechado para o reflexo do pôr-do-sol no prédio da frente. Ninguém para cobrar, para gritar, para exigir diálogo. Ninguém para reclamar da rotina, chorar os problemas, esmiuçar as certezas. Ninguém. Exceto a síndica que mora no andar de baixo. Que azar morar em cima do apartamento dela. Tenta amaciá-la com jazz. De madrugada, Chico. Mas já não arrisca tanto depois que recebeu a primeira carta de advertência. Logo ele que nunca faz barulho, exceto ruídos nas horas mais impróprias. Que culpa tem se não consegue dormir de madrugada? Se esquece que mora em um condomínio cheio de regras? 
O problema das regras, para ele, é que elas consistem em uma única utilidade: serem quebradas. Não que faça isso por birra, mas simplesmente porque todo o seu ser age a favor de um critério, e este é o de ir contra qualquer coisa que se impõe. Ultimamente tem tentado controlar. Não arrasta mais a cama para o meio do quarto durante a noite. Também não bate mais a janela quando vai se deitar. Mas a música, ah, a música! Esta não pode ser reduzida a um sussurro. Não importa se uma nova carta estiver na caixinha do correio pela manhã.
Quase não precisa de nada. E, ao mesmo tempo, precisa de tudo. De volta ao conhaque (deste  precisa), lembra do tempo em que começara a escrever um conto sem título, um conto que sempre quis terminar, mas que nunca passou do oitavo parágrafo. Parece o homem do texto. Não tem nada na geladeira, exceto uns bombons que ganhou da família no Natal, gelo, a garrafa de destilado e mostarda. Teve um tempo em que ele dizia para ela: o dia em que eu morar sozinho só vou ter brócolis e mostarda na minha geladeira. Naquele tempo ele bebia apenas cerveja e vinho. Ela sorria, acrescentava pimentão à lista. Como se fosse apenas uma lista, e não duas.
Quase não precisa dela. E isto ainda não conseguiu escrever na agenda nova. Porque sempre precisa de uma agenda nova a cada começo de ano. A de 2013 é vermelha e custou toda a sua economia, R$110,00. Moleskine. E por falar em vermelho, ela ficaria decepcionada se visse que as paredes do quarto são brancas. Nunca admitiria. 

-Branco é vazio - ela repetia.
-Ou pode ser paz.
-Não. Jamais. Paz não tem cor.

Sente saudade principalmente das frases curtas. Foi por causa dela que aprendeu a escrever pausadamente. E cada vez menos, talvez. Pois foi também por causa dela que aprendeu a não se importar. E que a deixou. Era muito mar para se afogar. E ela nunca soube nadar. O que ele nunca disse é que também não sabia... essa coisa de mexer os braços e as pernas, ficar em cima da água, não se desesperar. 
O que ela diria se pudesse ver a cidade pela janela larga do apartamento 301? Se ouvisse as sirenes no meio da madrugada, em sintonia com a música alta saindo das caixinhas do computador? Talvez não dissesse nada. Talvez enchesse o copo de destilado e, em um gole só, liquidaria com a bebida. 
Sempre soube que terminaria sozinho, em um apartamento minúsculo, cheio de bichos, a cortina rasgada bem no meio, as roupas amarrotadas no armário pequeno, um banheiro sem box, os livros entupindo a estante. Sempre soube também que abandonaria essa ideia de escrever, aos poucos, mas nunca deixando a tradição de preencher uma agenda por ano, os anos escoando pelos dedos, o relógio parado na parede, mas os minutos passando sem pestanejar. Só nunca pensou que estaria satisfeito com isso. Existe qualquer coisa de quixotesco na sobra de satisfação.
Talvez lhe escreva algum dia sobre isso. Sem esperar uma resposta, é claro. Porque ela nunca responde. É um sino que não ressoa.