sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Barbas Tortas, 25 de janeiro de 2013.

Querida Lissa,

senti cheiro de mar hoje pela manhã. Ou de chuva. Na verdade, quase não consigo diferenciá-los. E não sei se isto é bom ou ruim. Choveu à tarde e eu nem vi. Quase nunca vejo o tempo do quarto andar, na mesa em que trabalho. Vi, depois, a calçada úmida, o ar um pouco mais fresco. 
Tenho várias coisas para escrever. Ao mesmo tempo, nada. Hoje ele me disse assim, quando me levava para o trabalho:
-Acho que quero ser nada.
E eu disse:
-Essa frase é minha.
-A culpa vai ser sua se eu realmente for nada.
Pensei que há muito não desejo ser qualquer coisa. Que excluí tão bem as expectativas que estou sempre aberta para qualquer coisa. Exceto o que sei que me irrita. Mas chove pouco, devo te dizer. Nos dois sentidos. Em qualquer sentido. Na falta de sentido também. E não irei para o mar tão cedo.
Percebes que não há nada a ser dito quando a tristeza, o caos, a incerteza ou a angústia não são predominantes? Espero que as coisas não funcionem da mesma forma contigo. Porque esse é o mal: ser dependente da própria contradição.
Meu avô está melhor. Fez as radioterapias e o câncer praticamente sumiu. Mas os meus olhos continuam marejando quando lembro dele. Porque, vendo-o, cai em mim, com uma força absurda, a ideia de fim. E posso suportar qualquer ruptura, menos a da vida dele.
Um vinho resolve, quando penso nestas coisas. Nem sempre resolve da forma mais delicada. Mas que diabos, o que é que o vinho não resolve, afinal?
Tenho saudade das nossas cartas. Mas não tenho saudade do conteúdo delas. E este silêncio, mesmo que você não perceba, é a prova de que ela anda por aí. E por aqui. Ela, essa coisa que você chama de felicidade. E que eu ainda não consegui inventar um nome. Até quando? Não sei. Sei de poucas coisas, Lissa. E nem quero saber de muitas.
Deixa espaço em você. Para o mar. Para a chuva que sempre volta. Para o sol que sempre mata a chuva. Mas não se enche disso. Disso. Você sabe. Já te disse que passa, mesmo que volte. E me digo também isso. Não importa a frequência.
Arruma o armário outra vez. Escreve outro conto. Outro que não seja sobre você. Mesmo que no fundo também não seja sobre uma pessoa diferente. Diz pro teu pai que ele é legal por te fazer gostar de Chico Buarque.
Teu presente de Natal ainda não chegou. O meu vai chegar um dia. Um dia. Tudo é um dia pra mim. Ou depois. Ou amanhã. Deixo tudo pra amanhã. Me desculpa.

Com amor,
senhora M. Batata