domingo, 7 de outubro de 2012

Carta não enviada II

Eu te escreveria que o vi o céu bem azul, um azul veludo, quando abri o portão de casa pouco depois da meia noite. Talvez eu começasse com ‘a lua ainda estava lá em cima, mesmo depois de todo esse tempo’ ou ‘eu sei que o céu queria me engolir’. A noite parecia dia, só que um dia de tempestade. Não aquelas cinzas, mas os que antecedem as grandes águas. Mas era só uma noite sem chuva, uma noite que anunciava o fim do mau tempo, pois há cinco dias e noites a garoa encharcava o meu cabelo. Enquanto fiquei pensando no que te diria, minhas mãos adormeceram de frio, segurando a chave dentro da fechadura. 
Eu te diria que um copo de vinho faz doer mais a cabeça do que dez dele. E que o meu erro foi descobrir tarde que o bar da esquina vende esse vinho seco, quase com gosto de água, mas que ainda me aquece, de alguma forma. E te falaria também ‘tenho dormido, mas as bolsas pretas estão cada vez maiores embaixo dos meus olhos’. Talvez seja a pele branca, ele me disse. ‘Pois a minha pele branca está cada vez mais branca’. Seria possível? 
Ah, eu também escreveria sobre as formigas, que me picaram pela quarta vez. Mas acho que não tenho vontade de mencionar isso. Repetitivo demais. E depois que eu terminasse, sem ‘boa noite’ ou qualquer despedida do gênero, guardaria a carta na pasta de cartas não enviadas, pois se as enviadas me enchem de vergonha, as não enviadas guardam com elas os sentimentos que poderiam ser bons.

30/08/12