domingo, 7 de outubro de 2012

Carta não enviada III

Queria te dizer que esqueci minhas botas de chuva de novo, logo nessa cidade que sempre chove quando eu menos espero. Que sempre chove, friso. E também esqueci o meu casaco preto preferido em cima da cadeira da outra casa. Tenho usado pijama de âncoras e lemes, um pijama azul marinho com branco. Mas acho que não faz muita diferença o que eu uso ou deixo de usar. Estou só enrolando para falar... para não falar. 
As palavras são opacas, sabe. Isso quando existem. Tenho escrito tão pouco! Apenas os relatos dos dias, quando lembro que preciso registrá-los. Mas a quem, se nem eu entendo a minha letra depois que escrevo. E também tenho lido poucos livros. Acho que é a mudança de rotina, essa mudança que se torna constante, nunca se rompe, entende? Parece que vai demorar até eu me estabilizar. Te digo que isso é bom, pois só assim consigo me distrair. Por que é que a gente sempre tenta se distrair da vida? Acho que tenho medo de vivê-la, algo como ficar paralela a ela, mesmo que dentro. Nunca penso que faço parte disso, mesmo sendo inegável que se vivo é porque faço parte disso. Não te parece óbvio? 
Foi só hoje que abri as cervejas. Parece que pode faltar tudo, menos cerveja. Ainda mais nesse calor insuportável. E agora sinto minhas bochechas quentes. Só que estou apenas na segunda cerveja. Meu rosto está sempre me delatando. Tudo me delata. Sinto-me nua, constantemente, como se, além do físico, pudessem saber também dos meus pensamentos, pudessem saber sobre essa minha timidez temporária, sobre esse meu gosto pela solidão. E ela, que parece tão improvável em uma cidade movimentada como esta, é o que mais me enche o pulmão quando respiro esse ar poluído. E te falo isso porque estou feliz com ela, porque pela primeira vez a solidão me chega sem arranhar o peito, sem ferir os olhos.
Tem samba na casa ao lado. No meu peito também tem samba.