segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Neste jogo não podemos ganhar. Alguns fracassos são melhores que outros, e é tudo." Orwell

O relógio marcava 8:23. Ou três minutos a mais. Ou um a menos. Ela não sabia, pois o locutor da rádio local não havia falado o horário naquela manhã. Apenas enfatizou a temperatura: 14°C. O sol nasceu quase morrendo e não secava as calçadas e as ruas úmidas. Talvez nem tivesse chovido. Ela não se importava. Desceu do ônibus no mesmo ponto que descia todos os dias, de segunda a sexta, e caminhou pela mesma rua para ir ao trabalho, dobrando a direita na primeira quadra e sempre cuidando para desviar o degrau escondido que fazia muita gente tropeçar. Naquela manhã, havia um homem sentado nele. No chão, um case com violão. Ou sem. Ela nunca saberia. Olhou sem perceber. Olhou sem ver. Instantes depois apagou completamente a imagem do violão.
A mente tentava fazer uma programação do dia, automaticamente: organizar os papéis, terminar de registrar os dados da semana, ligar para todas as pessoas da lista. Não fazia diferença se era segunda ou quinta. Os dias pareciam iguais. E a vida rebelde de 17 anos ia se encaixando dentro de um mundo que a aceitava, mas retorcia e modificava o que não estava nos padrões.
O homem estava naquela esquina desde a noite anterior. Sabia que não havia chovido, que a temperatura da noite era 10ºC a menos do que naquela manhã, que a cada dois minutos parava um ônibus no ponto e o barulho era ensurdecedor. Em uma folha branca, tentava colocar tudo isso com a ponta da caneta preta. O papel estava no bolso dele há tanto tempo que as quatro marcas de dobra pareciam fazer parte da folha. Quando a garota passou pela esquina, mesmo que as suas botas fizessem barulho, os olhos dele estavam ocupados em fixar as palavras que preenchiam aquele espaço vago. Uma letra de música, ele pensou. De que tipo? Ela gostava de música clássica. Ele ainda não sabia do que gostava. Tinha 37 anos e não sabia. Apenas andava de uma cidade para a outra, a mesma calça marrom desbotada, os sapatos velhos e gastos, o casaco preto que não esquentava e um par de luvas no bolso direito.
E ela esqueceu de vê-lo enquanto olhava o violão apoiado na calçada. E ele esqueceu de ver a saia branca de babados dela e os longos cabelos que não haviam sido penteados naquela manhã. E não se vendo, os dois jamais poderiam saber que nunca voltariam a se encontrar. Ela passando pelos dias iguais, ele indo para a rodoviária no fim do dia, porque ninguém havia lhe dado uma gorjeta pela música que ele não tocou.