sexta-feira, 29 de junho de 2012

Barco, vinho e óculos com armação dourada

Dez graus, ela falou em voz alta às 7h de hoje, assim, bem seco, sem nem ao menos um “bom dia” na frente. Eu quis lhe dizer para me arrancar da cama, porque há mais de uma semana estou chegando atrasada no trabalho, quase sempre perdendo o segundo ônibus, não por preguiça, mas por um cansaço extremo que já estabeleceu moradia na pele, embaixo dos olhos. Mas ela sabe. E sabe também que eu preciso de botas novas para o inverno, que estou usando as mesmas de chuva desde abril, mesmo quando o tempo está seco. E sabe também que eu não tenho dinheiro, que gastei tudo em livros e papéis de cartas que nunca são utilizados. Formam uma bela pilha, devo dizer. Folhas quase amareladas e mofadas porque são esquecidas em cima da escrivaninha, perto da máquina de escrever que está quebrada, ao lado do porta-canetas com canetas sem tinta.
Eu levantei meia hora depois que ela me acordou, as meias brancas sendo sujadas pela poeira do corredor. Vi a neblina, através da janela da sala, e a gata dormindo no sofá. O silêncio também é composto pelos latidos, pelo ruídos dos carros e pelas vozes das crianças. E lá estava ele, se alongando no curto espaço de tempo entre acordar e ir para o trabalho, me distraindo, gritando para que eu ficasse em casa relendo os livros antigos, começasse os novos, assistisse a pilha de filmes que ia crescendo, e tentando, mesmo que em vão, ocupar as páginas de cartas. Gritava para que eu, enfim, enviasse os e-mails que enchiam a pasta de rascunhos, que preenchesse as páginas da agenda amarela terrivelmente atrasada.
Todas as manhãs de junho são vazias e silenciosas, o cansaço opaco e pesado em cada móvel do quarto. E todas as manhãs eu paro ao lado do fogão, esperando a água do chá esquentar, para que o gosto de morango, ao beber, seja ainda mais forte do que o do silêncio. Talvez seja o vazio de junho. É ele que separa o mês de maio (carregado da melancolia de agosto) do mês de julho. É por isso que pesa. Mas pesa sem me causar tristezas, pois abre espaço para julho, que é cheio de cores e enfeites, usa sapatilhas de algodão e dança uma música sem tom, de tão leve que é.