quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Nota sobre Maria II

Lá vai Maria, um pontinho branco no meio de uma cidade cinzenta. Lá vai Maria, os lábios secos murmurando uma canção sem letra, os pensamentos mergulhados em um eterno paradoxo, os pés tortos e tensos. Lá vai Maria, a cabeça zonza com a poluição.

Lá vai Maria, uma pontinha de esperança nesse caos em que ninguém vê ninguém, ninguém sente ninguém, ninguém quer saber de ninguém. Maria não consegue fingir que não vê os homens loucos no primeiro vagão do trem. Não ignora o cheiro de vômito ou de mijo na rua perto do metrô. Maria tapa o nariz quando o cheiro do rio está forte demais. E chora na rua quando lembra que tem saudade, embora não lembre exatamente de quem ou do quê. Uma vez disseram que o coração fica duro quando se mora em cidade grande. O coração de Maria está cada vez mais mole. E é tanto que ela vai com o coração na mão e as unhas roídas.

Lá vai Maria - mesmo quando não quer ir. Vai aos trancos e barrancos, mas ainda assim com passos leves. Vai com a ânsia de paz conturbando o peito. Vai - mesmo com vontade de deitar em posição fetal, nas segundas-feiras chuvosas, e ficar ouvindo o vento. Vai. E diz "sim"quando quer dizer "não". E diz "desculpe", ainda que não haja motivo para se desculpar.

Maria sente que ainda sente. E sente que quer continuar sentindo. Por isso quer seguir partindo - e não ancorar. Maria ainda se sente mar. Ainda se sente ar. E não quer deixar isso morrer.

Maria não quer morrer.