quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Notes from the couch XXXIX

Como dói me ler e saber que já não sou aquilo que fui, que costurei na pele, que cravei no coração. E era tanta a certeza de querer ser nada que ela plantou uma incerteza no presente. Agora tenho um passado, mas não tenho um presente. Esse é um presente fantasiado de vazio, de unhas roídas, de realidade inventada. Me inventei, mas o passado continua lá: um fluxo inesgotável de mim, de cabelos voando, de um corpo mais magro em cima de uma bicicleta roxa pedalando mais rápido do que deveria. De uma mente bêbeda de falta de sentido. E o presente é essa monocromia. Uma ânsia de ver o mar, mas disfarçada de cansaço. Um cansaço de sair de casa, mas disfarçado de tristeza. Uma tristeza de ser personagem, mas fantasiada de saudade. Uma saudade de casa, mas fantasiada de independência. 

Criei tantas camadas para não ser. Criei motivos e mudanças. Criei cidades. Criei uma desculpa para empurrar com a barriga o que não cabia mais no coração. Criei uma distância de mim mesma para amenizar o sentimentalismo. E criei tantos eufemismos para escrever que agora já não consigo mais escrever. Me inventei e virei minha própria personagem. 

Que saudade de mim - embora eu saiba que essa é uma daquelas falsas lembranças. Que saudade da minha loucura nos dias de chuva, nas noites solitárias, no último vagão do último trem da noite. Que saudade de conseguir beber cerveja barata. Saudade até das ressacas, da falta de dinheiro, da ausência de comida na geladeira, das lagartixas que entravam no meu quarto. Que saudade da vitrola queimada, das aulas matadas, do mercadinho da esquina. Que saudade de olhar pro amanhã e ver uma enorme mancha preta. Que saudade de não ter saudade.