terça-feira, 10 de novembro de 2015

Notas de SP IV

Hoje um homem começou a acenar histericamente para mim enquanto eu atravessava a passarela do trem. Não havia mais ninguém nela, exceto nós dois. Lembrei da manhã do meu aniversário, quando um homem louco ficou me seguindo - e gritando comigo - durante todo o caminho para o trem. Eu apressava o passo, mas ele não me deixava passar de jeito nenhum. Fiquei triste porque era meu aniversário. Fiquei triste porque estava com medo e queria ter xingado ele, mas não consegui. Depois, me senti culpada por ter desejado gritar. Era só um homem louco, talvez menos do que eu.

Pensei que aconteceria o mesmo hoje. Que seria seguida, que me sentiria acuada e com vontade de explodir. Mas aí o homem disse, meio confuso, que precisava ir pra estação... não sabia qual, mas precisava ir. Eu disse que pagava, sem problemas, e comecei a citar todas as estações da linha para ele se recordar. Percebendo que eu estava confusa com o fato de ele não saber onde precisava ir, o homem disse "é que sou usuário de drogas, e não quero mentir sobre isso".

Havia tensão da parte dele. E havia tensão da minha parte também. Perguntei o que é que ele usava. O homem recuou, pensou antes de responder (uma luta dele com ele mesmo), mas no fim encheu a boca e disse: crack. Depois disse que acreditava em Deus, mas que por causa de uma mulher tinha parado de ir na igreja. Ia voltar para a igreja, ele sabia. Tudo tinha seu tempo. 

Quando descemos a escada para a plataforma, ele olhou pela primeira vez pra mim e disse "deve estar passando muita coisa na sua cabeça". E estava. Desde que fui assaltada, há uns dois anos, fiquei ainda mais para dentro de mim. Uma ideia meio incoerente: saber que estou no mundo, que nada vai alterar esse fato, mas, ao mesmo tempo, criar uma bolha ao redor de mim para que ninguém se aproxime. Não quero que ninguém fure a minha bolha, corte de novo a minha barriga, tente levar qualquer coisa de mim - principalmente a minha pseudo-segurança. A verdade é que nunca mais me senti segura. Antes de ser assaltada, eu andava assoviando pelas ruas de Porto Alegre, mesmo à noite. Depois, adotei no rosto uma expressão séria e cruel. Uma espécie de repelente.

Não sou só eu. E São Paulo me fez ter ainda mais consciência de como as pessoas têm medo. Andam depressa, ignoram os mendigos. Não ajudam ninguém, exceto aqueles sem perna ou sem braço que pedem dinheiro no trem. Têm medo de ajudar. Medo de que a boa intenção volte com uma facada. E eu entendo esse medo. Todos entendemos. O problema é que, por causa do medo, desumanizamos as pessoas quando ignoramos um pedido de socorro. Quanto mais ignoramos, pior fica. Quanto pior fica, mais medo sentimos. É um ciclo vicioso que só tende a piorar. Gostaria de pensar que não.