domingo, 24 de março de 2013

Histórias de condomínio - I


Ainda não sei o que aconteceu. É claro que ninguém quer começar a ler um texto sabendo que o final não será esclarecedor. O que hei de fazer? Mentir? Não, conto apenas o que vi. E isto ultrapassa a minha interferência. Não posso inventar para agradar um leitor.
Saí para beber exatamente às 20h deste domingo. A porta da vizinha do 307 estava aberta. Não teria percebido se não tivesse ouvido vozes, que acompanharam o movimento do meu molho de chaves batendo contra a porta de madeira cor bege. Dois homens concordavam com monossílabos. Uma mulher, na faixa de 40 anos - pela voz - falava em ritmo acelerado e ofegante.
Demorei-me mais no processo de trancar a porta. Não porque sou o tipo de pessoa curiosa, mas porque o que estava acontecendo podia interferir no meu apartamento. Virei-me silenciosamente e vi dois policiais, com pranchetas na mão, anotando o que a mulher falava. Não pude visualizar a fisionomia dela, uma vez que o armário da cozinha cobria a sua imagem. Ouvi o que dizia:

- Ela me ligou perguntando se eu iria vir para visitá-la. Eu disse que hoje não.

As palavras iam se atropelando: o objetivo era uma sair vitoriosa. Os policiais concordavam mecanicamente, como se passassem por este tipo de situação todo o dia. Como se nem ouvissem uma palavra do que a mulher dizia.
Não ouvi o resto. Desci dois lances de escada e parei antes de sair pelo hall de entrada. O porteiro olhava para frente, não como se pensasse, mas como se fosse um... porteiro. Alheio a tudo. Olhei-o e nem pensei antes de perguntar:

- O que foi que aconteceu com a senhora do 307?

Ele respirou fundo, cruzou os braços na altura do peito, e respondeu com a voz mansa:

- Nem sei. O que vi foram os dois policiais que chegaram. Queriam entrar logo, sem se identificar. Veja só isso: sem se identificar! Sabe o que eles disseram quando pedi documento? 'Somos policiais'. Grande coisa! Podia ser o papa que eu não deixaria passar sem identificação.

E suspirou. Um suspiro de cansaço. Um suspiro de quem não quer saber de um problema a mais, de uma dor a mais. Um suspiro de quem está pensando em outra coisa, que não na senhora do 307.
Saí para a noite e a noite entrou em mim. Respirei um ar de domingo, tão clássico em Porto Alegre, tão diferente de todos os outros ares de domingo de todas as outras cidades. Caminhei pela rua escura pensando nela, a velha do apartamento da frente. Ela que eu só fui ver pela primeira vez três meses depois que me mudei: pelo olho mágico da porta. Limpava a casa, a senhora. Baixa, saia até os pés, a pele muito morena, quase negra, os cabelos brancos, opacos por causa do tempo, óculos com as lentes redondas.
A senhora colocava as três cadeiras do seu apartamento para o lado de fora, limpava o chão - com a porta aberta - e depois colocava as cadeiras para dentro, em movimentos muito lentos. Lembro do Natal, principalmente, em que coloquei na porta uma guirlanda feita com cabeças de barbies. Até então, ninguém havia colocado nada nas portas. E era dia 23 de dezembro. Na mesma tarde em que eu enfeitei a minha porta, ela pendurou uns sinos, com uma fita vermelha. Tivemos as únicas guirlandas de todo o prédio.
Nunca me disseram o seu nome. Também nunca ouvi o tom da sua voz. Nas segundas, quartas e sextas, deixa o lixo em frente a sua porta, ao lado do tapete azul com desenhos infantis. Desce a escada do prédio com dificuldade, e só o faz por necessidade: quando precisa fumar. Levar o lixo? Não. Isto não é prioridade.
Quando chego da faculdade, sempre depois da meia noite, posso ouvir o som da tv. Quando saio para o trabalho, sempre muito cedo, também ouço o som da tv. Talvez ela durma com a televisão ligada. Sou assim com o rádio também. Talvez ela tenha insônia. Talvez não durma, simplesmente. Pode estar cansada de dormir. Talvez tenha dormido para sempre. Não sei. Não sei quem era aquela mulher falando alto. Sua filha? Por que os policiais? Fugiu? Suicidou-se? Teve um ataque cardíaco? Alguém invadiu o apartamento?
Não sei se um dia irão me contar. Voltei e o tapete azul estava ali, um pouco mais torto do que normalmente. Na porta, pendia a rosa de plástico. No chão, ao lado da planta, uma sacola de lixo.

A música termina e ouço a síndica bater no teto - ela mora abaixo de mim. Preciso parar, já está tarde. Não há escrita sem música. Dizem que não há história sem final. Mas não posso fazer nada quanto a isto.