sábado, 27 de outubro de 2012

Barbas Tortas, 26 de outubro de 2012

Querida Lissa,
às vezes ainda sinto a água salgada do mar no meu nariz, na minha boca, arranhando a minha garganta, e não sei te explicar por quê. Sequer tem mar nesta cidade. Sequer tem chovido. A minha casa agora tem cortinas e duas cadeiras de mogno e veludo vermelho. Escuto os carros passando, e às vezes abro a janela, no meio da madrugada, para ver a lua imóvel. Ainda assim é minha. Talvez seja ela que afaste a chuva.
Mas quase me afogo. E não sei te dizer o motivo. Só sei te contar que vejo bêbados dormindo, ao amanhecer, na frente das portas das lojas, e moradores de ruas pedindo dinheiro, quando saio do trem às 23h. Seus olhos arregalados, mais de ódio do que de necessidade, corrompem ainda mais suas vidas desgraçadas. Parecem me culpar por isso. Eu gostaria de dizer que as minhas roupas limpas não me fazem menos desgraçada do que eles.
Não acho que esse fato seja o responsável pelo meu quase afogamento. E não sei se, necessariamente, algo deve ser. É claro que descanso os remos no fundo do barco com menos frequência. E só os deixo de lado quando aquela velha angústia me dá bom dia com os primeiros raios de sol que entram pela janela da cozinha.
Que te dizer além disso? Que pensaria que a angústia desapareceria em meio ao caos de cidade grande? Não, nunca me iludi. Também não espero ver o fim dela. Parece que me limitei a aceitá-la duas vezes por semana, entre uma viagem e outra de trem, naquela faculdade com gosto de madeira antiga. Te digo que dói bem menos agora, mas ainda dói. Lembro que você me escreveu um dia pensando que poderíamos estar atadas a isso que não encontramos um nome, mesmo que a razão continue a ser inexistente. Talvez seja isso.
Tiro o pó dessa dor misteriosa (se é que posso chamá-la assim, pois em alguns momentos me soa mais como uma espécie de sentimento indeterminado) e volto a colocá-la na prateleira mais alta, para que não se quebre em mil pedaços e se espalhe dentro de mim. Te digo também que quero voltar a escrever cartas, contos e poemas, mesmo sem rimas, mas que por enquanto não tenho mesa, não tenho insônias e não tenho pesadelos.

Com saudade,
senhora M. Batata