domingo, 12 de fevereiro de 2012

Nota sobre o verão II

Ela acorda duas horas antes do necessário, coloca as pernas nuas para fora da cama, lentamente, até que os dedos dos pés encostam no tapete bege felpudo. Não há barulho na rua. O sol mal acabou de nascer. Não é que levanta mais cedo porque tem tempo de sobra. Deita-se por volta da uma da madrugada, o dia inteiro de trabalho pesando nas costas. Levante-se mais cedo para aproveitar as únicas duas horas do dia em que o calor não consegue predominar.
Não há movimento na casa. As luzes estão apagadas e a mesa da cozinha continua desarrumada, ainda da janta da noite anterior. Ninguém lavou a louça. Ela retira um iogurte da bandeja de seis unidades, senta-se no sofá, estende os pés nos pufs e tenta lembrar o sonho. Milho, relâmpagos, reclamações, gramado, um telefone que não toca, um pseudo amor platônico seguido de um despertador.
Coloca a mesma calça jeans clara do dia anterior, uma blusa branca, leve, fina, confortável. Prende o cabelo em um rabo de cavalo bem alto, calça a sandália vermelha e sai pela porta da frente, sem fazer ruído. Caminha duas quadras, os raios do sol anunciando o calor, os raios do sol quase a cegando. Senta no banco da praça para esperar o ônibus. Tem ainda uma hora para ler e aproveitar o vento que ecoa pelas ruas da cidade, tentando acordar todas as pessoas da cidade, morrendo quando todas as pessoas da cidade se levantam.
Retira Manuel Bandeira da bolsa. Os poemas despertam toda a tristeza acumulada, sem sentido, sem especificações, sem prazo de validade. Ela suspira. O sol vai ficando mais forte, as pessoas vão chegando à parada, os ruídos das conversas vão ficando cada vez mais altos até que escuta as frases claramente.
-Não aguento mais esse calor.
As mesmas pessoas que reclamam do calor são as reclamam do frio. Ninguém mais suporta o verão, isso não é novidade. Mas elas repetem e repetem e repetem como se não tivessem outro assunto. Talvez não tenham. Apenas falam porque precisam mover a língua.
Ela levanta, a testa suando, a camisa grudando nas costas. Entra no ônibus e depois refugia-se na sala do trabalho com ar condicionado, três xícaras de chá e dois bolinhos de baunilha. Só sai de lá quando o sol morre e tudo o que se pode ver dele são as cores se misturando no céu. A morte mais linda que pode existir.