terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Dois parágrafos de rotina

Finge que nada cai dos seus dedos pela manhã e vai de encontro ao chão, como se fosse pesado demais para levitar. Mata o dia com dezenas de xícaras de café ao mesmo tempo em que destrói o fígado, o sono da noite, os pensamentos do dia. Vê o calor nascendo e morrendo pela janela do trabalho, a mesa suja, os papéis voando quando o vento ainda tenta existir, não sabendo em que lugar entra, não sabendo por que morre. Sempre perde a caneta, o marcador de texto amarelo e os arquivos do word que não salva. Suja a camiseta branca bem passada que depois vira camiseta manchada e depois pano de chão. Não sabe se a tontura é pela noite mal dormida ou pelo excesso do café. A cada meia hora um cigarro. Os olhos são vermelhos, a pele pálida e as pernas cansadas. Insiste em caminhar no final do dia. Dois quilômetros, três, completa quatro quando o sol vira um borrão laranja e depois é engolido por umas árvores altas demais no final da montanha. Em casa a televisão ligada no mesmo volume, a avó doente no quarto dos fundos, o gato branco que não para de soltar pelos, o pai que reclama da grama que não é cortada há três semanas, a mãe que pede para ele parar de reclamar, o irmão chorando porque precisa de leite, atenção, que alguém lhe conte alguma história sobre leões, dragões e um guarda-roupa que leva a outro mundo.
A água correndo pelo corpo magro às 9 da noite. Gelada. Os pingos grossos eriçando os pelos das costas e da barriga. Uma música inventada na mente para abafar as vozes que se misturam do lado de fora do banheiro. É segunda-feira. A toalha está molhada. Alguém a usou. Nunca lembram que a azul é sua. Ou fingem não lembrar. Vai de cueca para o quarto. O pai olha de cara feia, não encarando-o de frente. A mãe nem o vê, não pergunta como foi o dia, não está interessada se saiu a lista dos aprovados na faculdade. Quatro anos tentando, sabendo que nunca vai conseguir, que não quer conseguir. Horas demais desperdiçadas em dias que não saem de suspiros, que apenas nascem e morrem, tão lentamente como se fossem obrigados a existir. Deita na cama desarrumada, encara o teto amarelado. Dói fechar os olhos. Fuma outro cigarro. As cinzas sujam o lençol listrado, caem no carpete marrom, algumas voam pelo quarto, dançando uma canção que não é tocada. As portas do armário estão abertas. Revelam roupas que são dobradas pela mãe e desarrumadas por ele pela manhã, quando tenta em vão escolher alguma camiseta que não faça com que pareça tão magro. Novamente esquece de jantar. Talvez beba uma xícara de sopa pela manhã, trocando as refeições. Talvez levante da cama atrasado, saindo de outro pesadelo, correndo para chegar no horário e fingir que nada cai dos seus dedos pela manhã e vai de encontro ao chão, como se fosse pesado demais para levitar.

"Todas as acumulações da vida que nos consomem - relógios, corpos, consciência, sapatos, seios - filhos paridos - seu Comunismo - 'paranóia' nos hospitais." Ginsberg