terça-feira, 2 de agosto de 2011


Ontem foram flocos de mim que caíram na calçada úmida. Hoje são finos e gelados pedacinhos de neve, quase branca, quase transparente, que enchem os olhos e se desmancham centímetros antes de tocar o solo. O céu não é mais cinza, tampouco adquiriu alguma tonalidade forte ou misturou cores. É esse neutro. É quase um abismo. É invisível e sólido. É mágica e realidade. É inverno. Não choro a melancolia dos contos de fadas. Não coloco a mão pela janela para roubar a natureza. Não sinto o gosto dela na minha boca. Deixa que caia todo o gelo suspenso no ar. Fico com a imagem da árvore morta, perto da minha janela, que grita uma dor acalentada pelo alívio, que fala, mesmo sem voz, da beleza da nudez.
A menina passa na rua com o guarda-chuva vermelho inclinado, cobrindo metade do seu corpo miúdo. Luta com o vento e não percebe o tempo, a temperatura negativa, os gatos escondidos no porão da casa de madeira e a calçada escorregadia. Caminha apressada e, entretanto, suas botas de borracha não reproduzem qualquer som. Tocam de leve na rua, como se fossem criadas pela minha mente, como se não passassem de uma ilusão gélida. Posso ver, pelo guarda-chuva que a cobre, as bochechas vermelhas de frio e os lábios roxos, quase rachados, que se encontram com o vento e se abrem de leve, para que os dois fios de cabelo, grudados nele, encontrem outro lugar para pousar.
Meus olhos ficam úmidos. Não por causa da menina ou da neve, que só quem está no alto sabe que é neve. A água é pelo repertório rasgado do dia. Os braços longos da terça se agarraram na segunda, e logo os dois dias se uníram. 48 horas de sentimentalismo, irritação, tristeza doce e páginas em branco implorando para serem puras para sempre. O guarda-chuva vermelho da garota é entortado pelo vento e o seu cabelo com nós, quase escuro, é o que faz o cenário ter vida. Não é cenário inventado. Descubro que a menina ainda existe. Se não em mim, nesse mundo complexo o bastante para assumir uma simplicidade que me deixa nervosa. Ela some no final da rua, lá onde os carros brigam para atravessar a avenida, lá onde o asfalto fala todo o dia a mesma frase e onde as árvores, arrancadas pela raiz, não choram nem questionam o fim.
Abro a janela. A madeira estala e as pontas dos meus dedos, quase congelados, ficam vermelhas. O vento entra na sala onde o ar quente artificial me dava possibilidades de fazer as palavras surgirem na tela. Meus cabelos fazem o mesmo movimento que os fios escuros da garota. Minha face se transforma em duas manchas vermelhas, uma de cada lado, e os lábios ficam roxos. A imitação perfeita do corpo que passou apressado há poucos minutos. E quando olho, não há sombra dela, tampouco existem pegadas. A sala fica cheia de frio, de ironia e daquela que há meses não vinha me ver. Respiro os dois graus e a loucura. Não me olho no espelho, mas sei que os meus pés estão em botas de borracha e que meu guarda-chuva de estrutura frágil vai se quebrar assim que eu der dois passos leves, quase sem tocar o chão, na rua onde vou desaparecer.

"Vou caminhando em direção ao Monte Mien Mo à luz da lua de agosto, vejo lindas montanhas enevoadas surgindo no horizonte que perecem me dizer 'Você não precisa torturar sua mente com pensamentos incessantes' e aí me sento na areia e olho pra dentro de mim e vejo aquelas velhas rosas dos que não nasceram de novo." Kerouac