sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Ela sempre entrava pela porta da frente, caminhava na ponta dos pés até chegar ao copo rosa. Depois, cheirava-o cuidadosamente para apreciar o cheiro de vinho estragado e sentava-se na mesa. Meus livros eram como brinquedos em suas mãos e meus olhos se enchiam de fúria quando ela os pegava. Eu não entendia o motivo de suas visitas. Aquele cabelo opaco me dava náuseas. Aquele seu ar alegre e indiferente fazia com que eu me sentisse deslocada. Mas ali era a minha casa, afinal de contas, e eu mal a conhecia. Ela não tinha motivos para entrar na minha vida. Ela não tinha nome, palavras, ações compreensivas. Eu não tinha mais eu. Eu me afogava na fumaça do seu cigarro, não conseguia me locomover para tirá-lo de sua boca e explicar furiosamente o quanto detesto que fumem perto de mim. Todas as vontades e sentimentos explodiam no meu interior. Minhas pernas e braços não me obedeciam. Meu corpo colava ao chão. Apenas minha cabeça se inclinava acompanhando seus movimentos. De onde surgira tal ser? Que substância podia conter na sua mente? Por que não ficavam rastros quando ela partia?

Na manhã seguinte sobrava apenas a lembrança do seu ser sendo levado pelo vento como uma folha de papel. Mas eu não sabia que ela voltava todas as tardes. Eu dormia e esquecia da sua presença. Eu acordava e sentia vazio. Por vezes eu ficava sem o meu outro lado. Mas eu nunca quis admitir que ela era realmente o meu outro lado.