sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Querida, Lissa,
(já não escrevo "Barbas Tortas, etc")

Não é curioso que eu também tenha andado por aí nos últimos dias? Talvez seja isso... estamos sempre nos mesmos momentos, mesmo que a distância contabilize mais de mil quilômetros. E não te soa ainda mais curioso que esses dias percorri os sebos? Deve haver algo, sabe, algo que a gente não sabe explicar. Talvez não consigamos nem sentir. Ao contrário de você, não li Caio, apesar de tê-lo procurado pelas prateleiras. Procurei Clarice também. Mas parece que os dois me irritam. Estão sempre pra dentro. E, por eu estar pra dentro também, já não posso com eles. Não é isso que você sente, de repente?
Acho que andamos por aí na tentativa de distração. De fuga. São tão raros os dias que isso funciona. Tenho pensado em ir pra praia. Você devia aproveitar aí. Aqui é um tanto longe, e quase não tenho dinheiro. O aluguel, a luz e a internet me tomam todo o salário, confinando-me ainda mais a essa cidade quase caótica, quase calma. Antes isso não me incomodava. Mas agora é algo que machuca minha garganta, que pesa no peito. Sinto que estou presa. "There's a bluebird in my heart" está na parede do quarto. Acho que sou um pássaro dentro de mim mesma.
Nem sei como começar. Se é que há um começo. Sinto que só existe esse meio. Essa náusea. E, por estar sempre no meio, meu corpo reage e quer fugir. Ir para o fim ou para o começo. Tanto faz. Mas é como se algo me limitasse a esse meio. Mesmo no meio, estou sempre no ponto mais baixo ou no ponto mais alto, nunca na medida. Não é contraditório? As alegrias sempre são muito efusivas e as tristezas muito longas. Há sempre muito sol ou muita chuva. Existe pouco tempo, mas também existe muito. 
Vai ver que é porque eu tenho consciência de tudo. Já descobri como, por que, quando e onde. Foi tão angustiante fazer essa constatação. Estava em um bar. Era sábado. Eu, ele e uma amiga. Perto do piano. Eu havia levado a gaita de boca. Ele me acompanharia no piano. Não tocamos naquela noite. Falamos e falamos. Eu dizia que ter consciência das coisas era pior do que não ter. Pelo menos, enganado, se poderia viver mais feliz. Não haveria tanto peso. Ela concordou comigo, os olhos tristes, a mesma agonia nos lábios secos. Ele negou. Achava que não saber era pior. O engano é sempre mais trágico do que a consciência, disse ele. 
E bebemos. Parece a única forma de lidar com tudo: com os momentos bons, ruins e neutros. E depois daquela noite nunca mais deixei de ser lúcida. Agora sei de tudo. Por saber, já não consigo engolir os parênteses do mundo. Enquanto todos fecham os olhos à noite, os meus se arregalam ainda mais. Dizem na escuridão: eu sei. Escutam as sirenes, os carros, os bêbados. Repetem: eu sei. E nós sabemos, nós, bocas, olhos e ouvidos, o que se passa lá fora. Diferente desse comercial de margarina que lambuza a televisão. Nós sabemos que não. E que o sim bate na porta sem que ninguém a abra.

Já não depende mais de mim.

Tenho vontade de ficar te escrevendo durante um dia todo, mas todas as outras coisas consomem a minha consciência do mundo.

Fica bem por aí. 

Com saudade e amor,
M. Batata