quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A real sobre a realidade

Dei banho na realidade. Ela ficou tanto tempo debaixo d’água que mãos e pés ficaram enrugados. Chamei-a de elefante. Ela não respondeu. Com o riso ainda contido na cara, sequei-a com cuidado, para não arranhar a sua pele delicada com a toalha áspera, e lhe dei a minha melhor camisola, a vermelha, que tanto parece um vestido de bailarina. Pintei seus lábios finos com o meu batom mais novo. Alonguei seus cílios com o rímel barato e antigo. Penteei os longos e negros cabelos, que lhe caem até a metade das costas retas. Silenciou, a realidade. Deixou-se moldar por mim, eu que sempre fui tão à mercê dela. 
Depois de limpa, sentei-a na beirada da cama e deixei que ali ficasse. Abri as janelas e o sol entrou no quarto. Senti cheiro de manhã, de rua, de descanso. Há meses que não sabia o que existia além do extremo cansaço. Há meses que não sabia o que era uma noite de sono. Há meses que me deixava ser levada pelos dias, pela rotina, pelas cervejas antes da aula, pelas noites massantes. Varri o chão, arrumei as roupas, tirei o pó dos livros e preparei uma xícara de café. Servi-a de café também. Realidade bebe café, pois sim. E descobri que nos sentimentos melhor sem comer. Eu e ela, vazias, leves.
O dia passou com a janela batendo, por causa do vento, com a realidade sentada na cama, em silêncio. E o sol sumiu e virou noite. E a noite também entrou no quarto. E o dia passou, mas espero que a calma da realidade não passe. Que continue sentada na beirada da calma, em silêncio. Que silencie meus pesadelos e a contínua exaustão. 

Quase ajoelho à sua frente e oro. Mas permaneço com os lábios selados também. Nos acertamos assim, sem pronunciar qualquer coisa.