quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O som do sino da catedral



Dessa vez ele estava em frente à igreja bem antes da hora em que os sinos tocam. Não me viu passar, como da primeira vez. E de perto eu pude ouvir o que falava. Mesmo que alta, a sua voz era abafada por algo como o excesso de álcool ou excesso de sentimentalismo. Ainda não consigo separar uma coisa da outra. Só que, diferentemente da última vez em que eu o havia visto, não era uma garrafa vazia de cachaça que estava em suas mãos.
A igreja permanecia com os portões fechados. Portões cinzas e pichados de preto. Alguma frase ininteligível. E, com a igreja trancada, ele gritava. Gritava até que o cuspe saísse dos seus lábios escuros para pousar, com preguiça, na grade suja. Pensei que estivesse brigando com Deus ou quem quer que ele acreditasse que morasse naquela catedral. Ignorado pela igreja, pelas pessoas que passavam e o viam, mas não o enxergavam, e pelos ônibus, ele continuou seu discurso, enquanto eu diminuí o passo para ouvir o que o homem dizia com tanta ênfase.
Ave Maria, cheia de graça. Estendia os braços e olhava para o alto da igreja, como se lá estivesse alguém ou alguma coisa. O Senhor é convosco. Fechava os olhos, as mãos ainda estendidas, quase tocando o portão, os pés sujos e rígidos para segurar o chinelo quase arrebentado. Bendita sois vós entre as mulheres. O suor pingava da testa. Depois do amém, reiniciava a oração. 
Não sei quanto tempo ficou lá, embaixo do sol forte das 16h. Não sei se trocou o discurso, se comprou outra garrafa de cachaça, se viu o dia morrer e o sino tocar. Se observou as pessoas entrando, depois que os portões se abrissem, para a missa. Ou se desistiu, virou as costas e foi embora. Para uma casa que talvez nem tenha. Para uma vida que confunde com sobrevivência.

"Eu era um movimento de protesto, sozinho." Bukowski