segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Princípios dilatados
Dores que dissolvem
Sonhos afastados


Felicidade não existe no singular.

Ela acorda pela manhã, levanta da cama com os olhos fechados, abre a janela do banheiro para ver se tem sol ou chuva, lava o rosto queimado pelo sol do meio-dia, passa Bepantol nos arranhões feitos pelo gato, penteia o cabelo cheio de nós, coloca a pantufa de macaco rasgada, veste o blusão de lã, caminha com passos arrastados até a cozinha, encara a pilha de louça suja, lava uma xícara, coloca água ferver, senta na mesa de tinta branca com partes descascadas e espera ouvir a chaleira chiar. Não pensa enquanto espera. Ninguém pensa às seis da manhã. Quando a água ferve, coloca três colheres de açúcar na xícara limpa, o sachê de chá de hortelã, o líquido, assiste a fumaça dançar no ar, mistura com uma colher de alumínio e canta com o barulho que o toque de uma na outra produz. Assopra o chá para não queimar os lábios, respira fundo para sentir o cheiro artificial de erva, bebe goles pequenos com os olhos fechados, não come a bolacha Maria que está mole, não abre a janela para ver a vizinha estendendo roupa, apenas balança os pés que não alcançam o chão, como uma menina de cinco anos no banco da escola esperando a mãe ir buscar. Às seis e dez levanta da cadeira, vai até o quarto, tira o pijama amarelo, a meia preta, encara o espelho riscado, coloca a meia-calça marrom, o vestido xadrez e calça as botas para chuva que machucam o tornozelo da perna direita. Senta na cama e pensa se arruma as cobertas. Decide que não. E enquanto decide que não, lembra que mora sozinha, que não tem mais emprego, não tem mais faculdade nem comida na geladeira nem guarda-chuva. Lembra que o telefone está cortado, que só tem R$ 30,00 até o final do mês, que o único pedaço de pão está mofado, que as únicas bolachas estão moles e que tudo o que resta são três sachês de chá de hortelã vencidos. Porque a máquina não pode mais cantar. Toma duas bolinhas brancas com gosto de açúcar e volta a dormir para procurar uma outra realidade que não faz a casa gemer de fome, de necessidade, de apatia.