quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Histórias de condomínio: a insônia do 402

 
Dona Erna dorme tranquilamente esta noite, enquanto o porteiro caminha sorrateiramente pelos andares. Escuto o eco dos seus passos. Um eco de bota de borracha. Dona Erna não sabe que ele é psicopata e que escuta atrás da porta. Eu digo: ele é psicopata. Embora ninguém que o veja possa perceber de imediato o que se passa. Tampouco dona Erna. E deduzo que ela não dormiria se soubesse da sua natureza. Sei que agora dorme tranquilamente porque eu não escuto qualquer ruído vindo do seu apartamento, que fica exatamente acima do meu.
Dona Erna costuma fazer barulhos de madrugada. Arrasta os móveis de um lado para o outro, durante várias horas. Deixa objetos caírem ao chão. Ajeita as cadeiras que ficam em frente à mesa. Nas minhas noites insones, observo a sua dificuldade de dormir. Observo pelos sons, com uma curiosidade que se transforma em imagens na minha mente. Embora ela não saiba, dividimos isto que é tão agonizante: a vontade de dormir, a necessidade de dormir. Deitada e exausta, eu encaro o teto esperando poder ver algo através dele. Imagino dona Erna tentando não agonizar, caminhando de um lado para o outro, as pernas geladas, por causa das madrugadas frias, o olhar vago e, ao mesmo tempo, tão focado.
Talvez ela tenha dormido o bastante ao longo de toda a sua vida. E então não sente mais sono agora. Deve ter uns 80 anos. Talvez 90. Ou 70. Não sei. Nunca a vi. Penso que deve ter os cabelos brancos, curtos e lisos, que seus olhos são grandes e tristes, que seus lábios são finos e enrugados. Penso que é muito magra e pequena. Mas que é doce e silenciosa. E que, apesar de sentir frio, não se agasalha direito. Passa as madrugadas com um pijama fino e com um chinelo de pano, sem meias. Não sei se por preguiça ou se por se tornar indiferente ao frio.
A única coisa que sei de dona Erna é que ela é idosa. Quem me disse foi a síndica, quando eu lhe comuniquei que os moradores do apartamento de cima faziam barulho durante a noite. não com raiva ou com irritação, mas com curiosidade. Outro dia interfonaram para o meu apartamento e pediram se era o da dona Erna. Agora que tem interfone, as senhorinhas ficam conversando por ele. Bem, isto significa que dona Erna tem amigas.
Às vezes penso em fazer chá e bater na porta dela, levando uma bandeja com as xícaras e alguns biscoitos. Talvez pudéssemos fazer da insônia algo proveitoso. Entretanto, pode soar amedrontador alguém bater em sua porta às duas ou cinco da manhã. E ainda nutro uma esperança vaga de que o sono me derrube.
 
Foi só falar que estava tranquilo para o silêncio ser quebrado. Agora ouço os barulhos. Parece que ela não dorme. Ouço algo como bolas de gude caindo e quicando no chão de madeira. Será que ela joga? Eu pensando em chá. E ela jogando bolinhas de gude.

"Quando se vive sozinho, já nem mesmo sabe o que é narrar; a verossimilhança desaparece junto com os amigos. Também os acontecimentos deixamos correr; vemos surgir bruscamente pessoas que falam e que se vão, mergulhamos em histórias sem pé nem cabeça; seríamos testemunhas execráveis." Sartre