terça-feira, 29 de novembro de 2011
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Prosa do cansaço

Pois veja bem, vou fazer o que há muito tempo não faço: tentar falar. E espero que essa tentativa não morra como um soluço, a espessura áspera de uma palavra engolida erroneamente. Entende quando eu digo que talvez fossem as cores, que talvez foram as cores que ofuscaram as certezas? Entende quando digo que o vinho reprime a angústia? Ela tenta escapar pelas mãos, que fazem movimentos contínuos, ferindo o couro cabeludo, as cutículas mal feitas, os arranhões no pulso, no rosto e na barriga. Além de reprimir, acorda a melancolia que é tão masoquista e reclama por ter de abrir os olhos e perceber que ainda há vida, mesmo que quase abortada antes do fim. Dizem que isso é crime. Como pode ser crime escolher a liberdade? Mas, na verdade, o que eu quero te falar é que essa tentativa é porque talvez tivessem sido as cores. Ou a falta delas. Ou a invenção que tento associar com a profundidade de alguma superfície.
Antigamente você sorria quando eu ficava falando, o cigarro queimando na mão, queimando a mão, até eu enfim notar que havia outro mundo além do meu, e pior: eu vivia nesse mundo. Sei bem que esconder isso não vai mudar o grito rouco, a música falhada, o papel amassado branco, guardando um vazio doce que não pode ser. Não pode ser, simplesmente. A dor de cabeça começa no dedinho do pé que é torto. Quando penso que antes eu conseguia falar sem ter dor de cabeça, outra coisa se quebra dentro de mim. Outra coisa que me impede mais ainda de falar. Mas vou continuar tentando. É que antes a vodca me fazia articular tão bem que qualquer má pronúncia me deixava aterrorizada. Hoje a vodca só me faz vomitar. Você vai me dizer que é melhor mesmo que eu tire tudo de dentro de mim, de um jeito brusco, sentindo o brusco dar lugar ao nada, o que sempre quis. Acontece que o que fica em mim é cada vez mais desnecessário, e não essencial e verdadeiro, como disse Abreu. Enlouquece, mesmo que eu nunca venha a saber disso.
Talvez fossem as cores. Talvez foram as cores que deram lugar àquele raio, naquele almoço, naquele restaurante caro, um peixe ao molho rose, boêmia e bala de goma. Foi nesse dia que eu pensei "bem, vou continuar". E quando pensei em continuar, parei de falar, e parar de falar talvez tenha sido o que mais me surpreendeu, logo eu que jamais podia controlar o jorro de frases sem pontos, sempre com reticências. E foi depois disso que me demiti, retirei Thoreau da prateleira, amassado e cheio de pó, e saí na chuva de agosto, quase de setembro. Logo na esquina de casa, o livro molhando, setembro surgiu, não como o dia quando nasce ou quando morre. Foi sem beleza alguma. Nasceu de um remorso, precocemente, porque já não suportávamos agosto, os rostos pintados pela metade em muros de becos sem saída. Estávamos distorcidos em toca-discos que já não tocavam, em latas de ervilha vencidas e em camas sem sobre lençol. E ainda estamos distorcidos, mas isso é apenas um detalhe.
Talvez fossem as cores. Talvez foram as cores que fizeram com que nossos olhos se fechassem. Não apenas queríamos que agosto terminasse, mas logo nos demos conta de que já não aguentávamos setembro, outubro e, por fim, o calor de novembro, amarrotando o vestido cinza, cheiro de novo, em cima de um corpo que deveria estar nu. Eu te disse que já não podia mais falar ou ouvir, que a chuva molhando Thoreau entrava pela minha boca e enxugava o que ainda existia de real dentro de mim. Te disse um tanto seca que meus dedos tocavam as teclas de um computador vazio e que não era mais possível criar o que devia ser calado. Tudo isso porque decidi continuar. Agora estamos distorcidos, esperando com que novembro morra rapidamente, que dezembro não seja vivido e que o ano, bastardo, termine com um suspiro, sem champagne, lá naquele morro que começa com uma estrada de chão, íngreme demais para nos equilibrarmos em dois, três ou quatro pares de pernas. Talvez você me diga, com um pouco de medo, que não quer aquela loucura que vem do mar. E que a minha tentativa de falar é cada vez mais abafada pelo silêncio desse repertório avulso. Talvez fossem as cores.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
O tal de mendigo

quarta-feira, 9 de novembro de 2011
terça-feira, 8 de novembro de 2011
É quase um erro você me acordar a essa hora para dizer que a vitrola automática quebrou. Só não é um erro porque eu não estava dormindo, o que não acontece há duas noites. Bem, o que posso te dizer? A ausência é tanta que nem mais a sinto.
M.B.
sábado, 5 de novembro de 2011
Preciso ouvir música clássica, pensou enquanto se equilibrava em cima do meio fio, no caminho para casa, o sol se pondo, os óculos abafando os raios quentes. Mas no ipod apenas o de sempre: MPB, country e instrumental. Nada de Beethoven. Nada de Arvo Part. Nenhuma melodia no mesmo nível do cansaço.
-Excesso de dor é a anestesia mais eficaz. Não sinto a dor e, entretanto, sei que as feridas são visíveis. Excesso de dor é anestesia porque é loucura. Excesso de dor é melhor do que pouco, do que quase nada de ferimentos.
E como não havia música clássica, continuou se equilibrando em cima do meio fio, os pés dobrados como se estivesse de sapatilha de balé, mas neles apenas o mesmo all star encardido, tão velho que nos dias de chuva a meia de ovelhas se encharcava. Andava no mesmo ritmo e na mesma perfeição de quando tinha quinze anos. Quase se esqueceu do tempo. Quase se esqueceu de si mesma.
-O problema da escassez é o alarde que ela faz, sempre gritando mais do que o próprio tamanho. O problema da escassez é que ela não se aplica à dor. E a dor, que não pode sucumbir depois que nasce, se desalinha do corpo, da mente, dos fatos, quando alguém cita a falta.
Era mais fácil andar no trem, ele que se equilibrava tão bem nos trilhos. Era mais fácil se equilibrar de pé no trem, os joelhos dobrados para que o corpo não se enganasse na primeira freada brusca. Mas entre a segurança e a possibilidade de uma queda, era o masoquismo que confirmava a escolha.
-Só existe capitular no meu texto, pois logo depois encerro com o ponto final. Pulo até a introdução. Pulo do começo ao fim. É mais difícil terminar do que começar, apagar do que escrever. Todos os sentimentos se desenham, agora, nas nuvens que eu não consigo enxergar.
Os óculos pesando no rosto, o rosto quente, quase febril. Uma sacola na mão, cinco livros dentro. Sequer uma linha do que está escrito neles será lida nos próximos dois anos. Não há tempo. Não há vontade. Simplesmente não há qualquer coisa. E os pés, em cima do meio fio, cada vez andando mais rápido, a possibilidade de queda certeira, as mãos raladas já era uma quase realidade.
-Não quero porque sentir me basta. E cheia de sentimento não posso fazer outra coisa a não ser renunciar. Renuncio os começos porque estou cheia de meios que não foram excluídos. Renuncio a escassez porque o excesso me acalma. Só não renuncio a dor que é oportunidade de loucura.
Quase como uma bailarina, era assim que podia ser vista. Mas não sabia. Inventava a própria dança em cima de pedaços de concreto que se ligavam por cimento. Os lábios murmuravam a música clássica que não conseguia ouvir. As mãos digitavam no ar, tão rápidos eram os movimentos que se perdiam no final da tarde.
-Pois já não sou. E esse é todo o peso que eu posso carregar. Não renuncio o peso porque ficar leve me faria uma sacola no vento, sempre caindo e sendo erguida, sempre estufando e sempre reduzida a milímetros. A matéria estável pode não combinar com o abstrato inconstante, mas desequilibra. E existe desequilibro que não encanta?